Feliz e Maria vivem de uma forma livre e independente na margem do rio Sôrdo

Vivemos, hoje, numa sociedade consumista, dependente, supérflua, egocêntrica. O que se passa à nossa volta não nos diz respeito, não é connosco, logo não nos afecta. O objectivo de vida é ter dinheiro no intuito de ter poder, e esperar que esse mesmo dinheiro nos traga felicidade, nos compre a felicidade. Temos a felicidade que nos é imposta pela televisão, pelo vizinho, pelas revistas. Julgamo-nos ricos, detentores de toda a sabedoria, de toda a cultura, andamos na moda, temos o último modelo de telemóvel, possuímos um potente computador, em casa já não nos chega uma televisão e as que possuirmos terão de ter bastantes canais para podermos consumir, consumir, consumir. Nem que a ânsia do consumo nos obrigue a viver na mentira, no engano, na escravidão, na aparência, dependentes de tudo e de todos. Este pequeno preâmbulo serve para apresentar uma outra forma de estar em sociedade, uma outra forma de vida. São duas pessoas, o casal, Feliz e a Maria, que na margem do rio Sôrdo, vivem de uma forma livre, independente. O Feliz e a Maria, são oriundos da antiga RDA (República Democrática Alemã), onde, na altura, se vivia uma ditadura comunista que não lhes agradava. Chegaram ao nosso país em 1986, tendo já estado em diversos sítios (Serra da Estrela, Cabo Espichel, Vilar de Mouros) até assentarem arraiais, em 1999, numa antiga casa de moleiro existente próximo de Moçães, freguesia de Torgueda. O caminho para chegar a casa é de difícil trajecto, identificativo do afastamento que eles desejam e de acordo com a vida dura que levam. Na casa a luz eléctrica é inexistente, a água é canalizada de uma fonte próxima. Produzem os seus próprios alimentos através de uma agricultura natural sem recurso a químicos. A casa serve também de albergue, a Albergaria de Santa Hildegarda, fundada na páscoa de 1998. É destinada a pessoas «doentes» e ali faz-se uma cura, física e espiritual, através de plantas medicinais e dietas alimentares. Não tem preços comerciais, vive de donativos. Luta-se, na Albergaria, contra «a dependência social, cultural e monetária», contra «o sistema ateísta vigente», contra «as posições cristãs sem moral». Principalmente destinada aos jovens, é sua intenção que eles recuperem o ânimo, a independência juvenil. Procuram consegui-lo através de relações com ética, amor ao próximo, ajuda a si mesmo com a ajuda ao semelhante, trabalho, vida comunitária, meditação, espírito de sacrifício, humildade, pobreza voluntária, abnegação e auto-estima, atitudes essenciais, dizem, para quem quiser viver uma vida aprazível. A Maria Feliz diz possuir um grande conhecimento das plantas, da sua utilidade e características. Esse saber tem por base os escritos que Santa Hildegarda deixou no princípio da Idade Média. É Maria quem nos explica quem foi essa santa, a “patrona” da Albergaria. «Santa Hildegarda de Bingen viveu no séc. XII. Foi abadessa dum convento de Beneditinas na Alemanha. Com cinco anos tinha visões, visões essas que se prolongaram até aos oitenta e um. Aos quarenta e três anos teve uma visão de línguas de fogo que desciam do céu sobre ela. Interpretou este sonho como sendo uma ordem divina para difundir e escrever as suas visões espirituais. Começa, assim, a sua carreira como mística, escritora e compositora, dotes confirmados por Bernardo de Claraval e pelo Papa Eugênio II, conhecedores das suas obras. Escreve igualmente uma enciclopédia científica de medicina natural, alimentação e tratamentos de doenças; escreve sobre psicologia, astronomia, filosofia, pedras preciosas, animais, árvores, metais, insectos, doenças que ainda não existiam na sua época, e que hoje atormentam a humanidade e para as quais ainda não há, infelizmente, cura. Hildegarda foi fundadora de dois conventos, Rupertsberg e Eibingen.» O casal confessa-se cristão e diz-se bastante próximo de Deus devido à natureza que os envolve, aos sons naturais que “respiram”, ao murmúrio do rio que convida constantemente à meditação. Recentemente lançaram um jornal, o Apelo da Terra. «É a publicação mais estranha do país.  Tem efeito dinamite, se o povo absorve a mensagem», comenta o Feliz. «Não trata de informação diária, mas sim de informação anímica, mensagem para a alma». O Apelo da Terra faz a divulgação de meios necessários para «não sucumbir nesta luta entre o Bem e o Mal». Segundo Feliz, os quatro pilares fundamentais da Albergaria de Santa Hildegarda são «uma alimentação mais humana (mais natural e mais saudável), a aplicação da medicina natural como profilaxia diária e terapia consciente, uma vida modificada e ética, e, por último, a responsabilidade e a disciplina diárias como preservação destas bases fundamentais da libertação espiritual». Há quinze anos a viver em Portugal sem rádio, sem televisão, sem máquinas, a tratar a terra e a praticar medicina natural, Maria Feliz viu perder-se a sabedoria popular, viu morrer a medicina natural. «Vi crescer a descrença, a preguiça e a negligência, promovida pela medicina industrial. Tudo é aparentemente fácil, tudo está preparado, tudo é feito pelo homem, com mais ou menos sucesso.» Talvez por isso acredite ser sua missão ensinar ao povo português os seus conhecimentos. «A medicina vem de Deus, é uma criação divina. Tudo o que Deus criou, o fogo, a água, o ar, os animais, as pedras preciosas, as plantas, as árvores, os peixes, os metais ou os insectos, podem servir de medicamento. A medicina natural tem de possibilitar, por princípio, o tratamento necessário e adequado. Não pretendo estimular o debate sobre a medicina natural, mas realçar o ânimo e a confiança em si mesmo para tratamento próprio». Considerando que a natureza humana é apenas uma parte do mundo natural e por isso dele depende totalmente, Feliz entende que «o homem tem que sacrificar o seu erro numa transformação de vida materialmente adaptada à preservação do mundo natural». Ou seja, «o espírito humano tem de se debruçar diariamente sobre a terra, tem de se preocupar com a sua alimentação e medicina naturais e tem que trabalhar com as suas forças naturais para a preservação e o restabelecimento do mundo natural». Até porque «se o espírito humano, na sua altivez e arrogância, destrói a natureza humana, por que razão deveria o corpo humano manter-se são, dependendo ele completamente do mundo natural?» Para Feliz, a «última missão humana é a coragem da recusa e o carácter de dar de modo abnegado».

in Eito Fora

Casal Feliz vive na margem do rio Sôrdo – Reportagem @ TVI

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